Loïc Koutana conta como tem lidado com a pandemia, dá detalhes do disco guardado há anos e explica seu sumiço das redes sociais
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“Na minha vida, tive três nascimentos: o primeiro é o literal, quando minha mãe me deu a vida; o segundo foi quando falei pra minha família que eu sou artista e iria viver de arte; e o terceiro, minha chegada no Brasil”, conta Loïc Koutana, de 26 anos, o icônico performer da banda Teto Preto, mais conhecido por seu nome musical e arroba no Instagram: L’Homme Statue. “A gente pode falar o que quiser do Brasil, mas é um país que traz muitas lições. Aqui, me sinto vivo. Quando é difícil, é difícil de verdade, mas quando converso com uma amiga, é uma troca de verdade. A gente está sofrendo agora, mas, aqui, às vezes, a luta vale mais a pena”. Conversar com o performer, cantor e compositor franco-congolês sobre sua residência em nosso país evoca duas máximas: amar o Brasil é uma escolha, e querer construir alguma coisa aqui – seja música, seja um outro amor – é algo admirável.
Desde a infância, Loïc sempre esteve cercado de arte. Considerar-se um artista, no entanto, foi um ato de rebeldia. “Faço parte de uma família musical que não se permitiu ser musical. Meu pai toca baixo todos os dias, meu irmão aprendeu a tocar piano sozinho e uma das minhas lembranças mais antigas da juventude é ver minha mãe dançar na sala. Sempre tive esse banho musical, mas faço parte de uma família tradicional, na qual meu pai foi desincentivado a ser baixista e, quando minha mãe quis ser bailarina, disseram-lhe que isso não era trabalho. Hoje, vivo de arte, mas, no início, meus pais reproduziram comigo o que os pais deles falaram em outra época”, desabafa. A arte, então, era um prazer, um hobby que, aos poucos, foi se agigantando até o performer vir para o Brasil estudar Economia na Universidade de São Paulo, em 2015, depois de um período de três anos estudando Línguas Estrangeiras e Marketing na Sorbonne, na França. Na USP, Loïc cursou também aulas de línguas e, como a grade não era integral, o jovem estudante começou a conhecer a noite paulistana — ODD, Mamba Negra e SP na Rua foram festas que marcaram sua imersão na cena cultural.
Como em um de seus desenhos favoritos da infância, “Três Espiãs Demais”, Loïc foi costurando uma vida dupla: um shooting durante o dia e a graduação à noite. “Tentei me convencer de que meu mundo era o mais tradicional, mas a moda sempre me instigava de volta”, relembra. “Em um momento, me dei conta de que precisava me assumir. Nunca tive que sair do armário para minha família com a minha sexualidade, mas tive que fazer esse movimento em relação a arte. Foi uma ligação muito tensa, tremia antes de conseguir falar: quero viver de arte”.
Logo depois do choque emblemático com a família, o artista fez sua primeira performance paga, promovida pela festa de techno underground Mamba Negra e ingressou na sua maior e melhor escola artística: o Teto Preto. “Entrei no Teto com 20 anos, não entendia o que era arte, mas ela entrou nas minhas veias. Fui injetado nesse mundo, entende?”, diz. Há seis anos performando com o Teto, Loïc aprendeu a ser sincero em sua jornada artística e, ainda mais valioso, entendeu que o Teto Preto é um ótimo exemplo de que a arte mais vanguardista é o barulho que faz quando dois mundos colidem. “Habitualmente, música eletrônica é aquele tuts-tuts. A Laura teve a ousadia de inserir voz, textos brasileiros, poesia – não é uma coisa que se faz. A música Gasolina fala sobre um mundo que não se mistura com o tuts-tuts. O Teto me ensinou que não existem regras absolutas, é você mesmo quem escreve e define as suas regras”, declara.
NOVOS HÁBITOS
Com a pandemia, Loïc também entrou para a estatística das pessoas que tiveram seus trabalhos muito afetados. Performar em raves, sinônimos de aglomeração e contato humano, tornou-se impossível. E estes e outros fatores externos passaram a influenciar cada vez mais seu humor. Para driblar o lado negativo, o artista tem tentado focar no trabalho e manter atualizada uma lista de chás com propriedades calmantes, que o ajudam a dormir à noite, quando o peso do dia se acumula e o sorriso fica denso demais para sorrir. Além disso, a casa em São Paulo é cheia de plantas, cristais e, o mais importante, ela é temporária. Hoje, Loïc mora na praia.
“Acho que tem muita força nas coisas que a gente se prometeu quando a gente era jovem, sabe?”, reflete, “Prometi a mim mesmo que seria uma pessoa que continuaria sonhando, viveria de maneira livre, não deixaria ninguém decidir por mim, seja um amor ou minha família, e também que estaria perto da natureza. Porém, esse sonho me parecia uma coisa pra quando estivesse aposentado, porque não tenho dinheiro para morar na natureza. Quem tem esse dinheiro? Quando a pandemia chegou, percebi que era muito mais sobre fazer o que faz bem pra a gente agora, porque a gente nem sabe do que é feito o amanhã. Peguei minha coragem e comecei a pesquisar casas”.
Em meio a essas reflexões, vontades de mudar e planos sendo feitos, Loïc experienciou pela primeira vez uma crise de ansiedade. Do dia de seu aniversário, 29 de agosto, em diante, foram três semanas em que o ar faltava e, em pânico, o artista não sabia nem nomear o que estava acontecendo. “Por que eu estou esperando envelhecer ou ter uma crise pra viver meu sonho?”, dispara . “Penso que não há nada mais potente do que tomar uma decisão e encará-la. Tento ser o mestre dos meus erros, prefiro errar e lidar com as consequências a guardar algum ressentimento. Não quero ser a pessoa que daqui vinte anos vai dizer para alguém ‘Ah! Por sua causa eu não fiz o que queria fazer’, sabe? Li uma entrevista esses dias sobre como a ansiedade tem a ver com o futuro e a tristeza se liga ao passado; o presente é curioso, porque parece muito chato, mas a grande magia está em estar no agora. Em que momento a gente respira? Em que momento a gente dança? Em que momento a gente está presente?”, provoca. Ao não encontrar a casa que queria em grupos do Facebook, viajou a Ubatuba e, durante uma caminhada na praia, viu uma placa de “aluga-se”. “Acho que uma força de atração muito grande opera quando você, sozinho, decide sair de uma situação. Você se pega pela mão e decide mudar sua vida, entende?”.
De todas as decisões caóticas que Loïc julga ter feito, essa foi a que mais deu certo. E, fatalmente, houve um impacto na sua forma de criar. Tudo influencia: desde as vizinhas que dizem ‘olá’ na rua ao tempo de qualidade dedicado à arte. Loïc ama São Paulo, mas acredita que as grandes cidades têm tanta informação, que a gente acaba fazendo tudo, menos o que nos faz bem. “Estava passando muito mais tempo tentando achar uma parceria, escolhendo um look para ir no rolê, que eu não estava mais dançando. Me sentia culpado por botar uma música pra dançar”, conta. “Quando mudei pra praia, parei no tempo. Apaguei um pouco as redes sociais e, quando voltei, tinha encontrado um propósito mais sincero. Perdi seguidores, mas minhas contas traduzem melhor quem sou de verdade – não mais a versão que as pessoas esperam de mim. Curiosamente, foi aí que as marcas chegaram e as propostas de parcerias aconteceram”.
Foram dois meses fora das redes sociais, o que deu ao performer tempo para pensar em como dominar aquelas contas gigantescas e produzir conteúdos que fossem relevantes pela sua perspectiva de mundo. Loïc ainda ama São Paulo e mantém um apartamento na cidade com o companheiro, mas prioriza as promessas que fez durante a juventude. “Na vida, tem o amor, a arte e a natureza, que são três formas de se curar. Toda vez que estou mal, vou à praia, danço ou canto”, revela. O primeiro disco, feito entre o final de 2018 e 2019, foi escrito em um momento difícil, em que ele passava por descobertas sobre si mesmo, sua forma de amar e como gostaria de ser amado. Segundo ele, a música o ajudou a entender o processo com menos dor. De alguma forma, traduzir o sentimento em letra, som e gesto foi uma forma de se curar.
FALA QUE EU TE ESCUTO
Se você não se lembra de ter ouvido tal disco, é porque, de fato, ele nunca saiu da gaveta. O álbum, batizado de Ser, é a primeira investida de Loic cantando e ainda não foi lançado. Foi no backstage do Teto Preto que o DJ, colega de grupo e hoje produtor musical de L’Homme Statue, Pedro Zopelar, flagrou o performer imitando as vozes de Laura. “Você canta”, disse. “Não, não canto”, Loïc respondeu. “Isso não foi uma pergunta: você canta”, insistiu. Era meio de 2018 e, no fim do ano, o produtor o convidou para ir ao estúdio e pediu que o artista levasse um texto. Movido por tudo que acontecia em sua vida pessoal, Loïc chegou com oito deles.
Ser tem nome, capa e 5 clipes finalizados. Mas, segundo Loïc, não é o momento para se materializar ainda. Ele acredita muito na força criativa do pós-pandemia e, pacientemente, aguarda. “O álbum fala muito de amor livre, ciúmes, como é ser um jovem preto LGBTQ+ hoje no Brasil, ser imigrante. Fala sobre crescer, aprender a dizer não. Canto em três línguas: francês, inglês e português, e uso uma linguagem com erros, que é o jeito que aprendi português. Pedi para o meu produtor não me corrigir para que o resultado fosse o mais sincero possível”, conta. “O disco me ensinou a nunca mentir. E esse é meu melhor conselho: viva, seja, tome controle dessa vida que é sua. Minha mãe me falava isso: não tem nada mais potente do que uma pessoa que é ela de verdade. O álbum fala de Ser, com o bem e o mal que isso envolve”.